
Falar em transformar o Rio em mercadoria não é falar só de cargueiros passando. Eles já passam, mas o Rio ainda é bem comum, guarda uma dimensão material e outra transcendente que nenhuma concessão captura. Quando o governo, a canetada, publica um decreto como o 12.600/2025 para entregar trechos dos Rios à lógica privada, sem consultar quem vive em relação com eles, ele arranca do Rio seu caráter de patrimônio coletivo e de entidade viva.

O que era território vivo, tecido por comunidades em interdependência com a floresta e com as águas, vira ativo controlado por poucos. Isso atinge todas as formas de vida que habitam o Rio e tudo que depende da confluência das águas, das vazantes e das cheias que moldam a paisagem. Muda rota, aprofunda canal, altera o pulso natural do Rio. E ignora algo essencial: Rios têm valor próprio e não existem apenas para escoar cargas. Como lembra Krenak, um Rio não é recurso, mas parte da construção de um povo, na dimensão material e também na dimensão transcendente que dá sentido à existência.
Há algo mais profundo acontecendo no mundo. Cada vez mais países reconhecem os Direitos da Natureza. No Equador, o Rio Vilcabamba; na Colômbia, o Rio Atrato; e na Nova Zelândia, o Rio Whanganui conquistaram personalidade jurídica. Na Índia, os rios Ganges e Yamuna foram declarados entidades vivas. Cresce o entendimento de que a Água, na superfície ou no subsolo, é bem comum. As águas são entidades vivas que precisam existir, fluir e se regenerar.

E há uma violação evidente nesse processo. A Convenção 169 da OIT exige consulta livre, prévia e informada antes de qualquer medida que afete povos indígenas e comunidades tradicionais. Prévia significa antes do decreto, antes da concessão, antes de alterar o Rio. Mas o governo fez o contrário. Publicou o decreto e só agora fala em consulta.

Pela revogação imediata do decreto e uma consulta verdadeira. Quem decide o futuro do Rio e de quem vive com ele? Privatizar desloca essa decisão para o mercado, para concessionárias privadas cujo objetivo é lucrar, mesmo que, para isso, apaguem a terceira margem e desestruturem a rede de seres vivos do território. E isso, sim, muda tudo.

