
Quando Nêgo Bispo explica que o território não pertence a nós, mas que nós pertencemos ao território numa relação de dependência e reciprocidade, ele lança uma provocação certeira: “Que tal o povo dos Alphavilles viver apenas com o que está nos Alphavilles, sem precisar de nada de fora, e que tal nós nos quilombos vivermos apenas com o que está nos quilombos?”. Chamam os quilombolas de pobres, mas quem teria melhores condições de seguir vivendo só com o que o território oferece?

Essa inversão nos faz repensar o que é riqueza. Nas comunidades quilombolas, a casa não é objeto de consumo nem bem para acumular, mas parte de um ciclo vivo. As casas são orgânicas, não feitas para durar séculos, porque toda vida se renova, se recicla. São erguidas com o que a natureza dá em cada bioma, numa arquitetura de pertencimento, para durar o tempo necessário.

“Se estou no cocais, posso usar palha das palmeiras para o teto; na Caatinga, cobrir com carnaúba ou telhas de argila; no Cerrado, com palha de buriti, babaçu, piaçava. Cada lugar oferece o necessário para viver, porque “todo bioma, todo ambiente, todo lugar nos oferta as condições para viver ali”.
A arquitetura quilombola é pensada em função da vida compartilhada. O quintal é o coração, espaço de aprendizado e continuidade, onde já se reserva terreno para a casa das próximas gerações. A cozinha é o centro da festa e da recepção: “Se alguém chegar na minha casa e ficar na sala, ninguém vai receber essa pessoa na sala. Todo mundo vai para a cozinha!”.

Não se trata apenas de construir paredes e tetos, mas de afirmar outra forma de viver. A casa no quilombo é extensão da floresta, do cerrado, da caatinga; é espaço de abundância, de comida, de festa e de futuro.
A autossuficiência não é individual, mas comunitária, porque ali tudo é distribuído conforme a necessidade daquela comunidade compartilhante. É o que Bispo chama de “capital comunitário”: não capital como dinheiro, mas como patrimônio vivo que é tecido de saberes, afetos, alimentos, territórios e relações. Não se acumula em cofres, mas circula entre quintais, roçados, festas e mutirões. Seu valor é medido na capacidade de manter a vida pulsando em equilíbrio com a terra.
